O “Alfabeto de Delaware”: Estratégias Jurídicas e Tributárias na Interseção entre Brasil e Estados Unidos


Por Cairo David — Advogado Tributarista, membro da Associação Brasileira de Advogados e da Rede Nacional de Advogados Tributaristas (RENAT).
O Estado de Delaware, nos Estados Unidos, é há décadas um dos epicentros mundiais de estruturas societárias flexíveis, eficazes e estrategicamente silenciosas. Com um sistema jurídico previsível, especializado e com forte viés pro-business, Delaware abriga hoje mais de 60% das companhias listadas na bolsa americana, incluindo gigantes como Google, Facebook e Coca-Cola.
No contexto do planejamento tributário e patrimonial internacional, consolidou-se uma expressão coloquial no meio jurídico e financeiro: o "alfabeto de Delaware" — metáfora que se refere à vasta gama de estruturas jurídicas possíveis dentro desse pequeno estado, principalmente para fins de blindagem patrimonial, sucessão internacional e otimização fiscal.
Este artigo visa explorar os principais elementos desse "alfabeto", examinando seus impactos tributários tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, e discutindo as linhas tênues entre planejamento e evasão à luz da doutrina e jurisprudência.
1. O que é o "Alfabeto de Delaware"?
É uma maneira informal de se referir à multiplicidade de instrumentos legais disponíveis sob a legislação de Delaware, cada um representando uma "letra" desse alfabeto estratégico:
• LLC (Limited Liability Company) – empresa híbrida com características de sociedade limitada e pass-through taxation (sem tributação na pessoa jurídica nos EUA).
• C-Corp/S-Corp – estruturas corporativas tradicionais, com regime fiscal próprio.
• Series LLC – LLCs com "subentidades" internas isoladas patrimonialmente.
• Trusts – mecanismos de segregação patrimonial com objetivos sucessórios, fiduciários ou de proteção de ativos.
• Trust Protector – figura que adiciona controle à estrutura fiduciária sem comprometer a independência legal do trustee.
• SPV (Special Purpose Vehicle) – entidades para finalidades específicas (investimento, emissão de dívida, holdings).
Cada uma dessas "letras" pode ser combinada conforme o perfil do cliente, a origem dos ativos, os países envolvidos e o objetivo do planejamento.
2. Tributação nos EUA: Pass-through e deferral como vantagens
Nos Estados Unidos, o grande trunfo reside na possibilidade de planejamento fiscal legal por meio da transparência tributária. Uma LLC com sócio estrangeiro e sem operações nos EUA (sem effectively connected income) não é tributada localmente. O lucro passa direto ao sócio (regime pass-through), sem retenções nos EUA.
Além disso, Delaware não exige disclosure público dos sócios da LLC — o que confere um nível relevante de privacidade, sem descumprimento legal, o que é absolutamente diferente de paraísos fiscais opacos.
Contudo, o IRS (Receita Federal americana) exige a entrega de formulários como o Form 5472 e o 1120, sob pena de multas pesadas. A não entrega pode configurar omissão e caracterizar evasão.
3. Tributação no Brasil: o nó do art. 7º, §4º da IN RFB nº 1.037/2010
No Brasil, o desafio é o tratamento da offshore controlada por residente fiscal brasileiro, ainda que constituída em Delaware.
O §4º do art. 7º da IN RFB nº 1.037/2010 considera qualquer entidade com "tributação favorecida" ou sujeita a "regime fiscal privilegiado" como empresa domiciliada em paraíso fiscal para fins de aplicação das regras de CFC (Controlled Foreign Corporation), ainda que localizada em jurisdições cooperativas. Isso abarca, na prática, LLCs em Delaware com pass-through taxation, caso os lucros não sejam tributados localmente.
Além disso, há risco de tributação automática sobre lucros auferidos no exterior (regime de tributação universal), com base no art. 74 da MP 2.158-35/2001, ainda que não distribuídos — jurisprudência que o STF ainda não pacificou de forma definitiva.
4. Trusts e sua natureza híbrida frente ao Fisco brasileiro
O uso de trusts de Delaware (Directed ou Discretionary Trusts) para fins de planejamento sucessório enfrenta outro dilema: a falta de regulamentação específica no Brasil.
A Receita Federal, na prática, tende a desconsiderar o trust como sujeito autônomo e atribuir os bens diretamente ao instituidor (ou ao beneficiário final), gerando efeitos fiscais como se houvesse doação ou transmissão causa mortis antecipada, ainda que o trust esteja válido sob o direito estrangeiro.
A jurisprudência, embora escassa, tem oscilado. O CARF já reconheceu em alguns casos a impossibilidade de tributar bens de trust como se fossem bens do instituidor, mas não há segurança jurídica plena.
5. O risco da desconsideração e a linha entre planejamento e evasão
O uso das estruturas de Delaware, se mal construído ou sem substância econômica, pode ser desconsiderado com base nos princípios da realidade econômica, propósito negocial e substância sobre a forma — todos consagrados na jurisprudência do STJ (REsp 1.540.900/SP, por exemplo) e no artigo 116, parágrafo único do CTN.
Planejar é legítimo. Simular, não. O contribuinte tem o direito de organizar seus negócios de maneira eficiente, desde que os atos tenham fundamento jurídico válido e objetivos econômicos claros. Como destaca Luciano Amaro, "não há ilícito em buscar pagar menos tributos; o ilícito está em fraudar a lei para isso".
Em assim sendo, o "alfabeto de Delaware" é, na prática, uma linguagem sofisticada para desenhar estratégias patrimoniais e fiscais transnacionais. Sua força está na flexibilidade, na confidencialidade relativa e no arsenal jurídico robusto que oferece.
Contudo, para o contribuinte brasileiro, o uso de estruturas em Delaware — seja LLC, trust ou SPV — exige planejamento cuidadoso, compliance tributário internacional e leitura crítica da jurisprudência nacional. Um erro de concepção pode custar caro: multas, autuações e desconsideração de toda a engenharia patrimonial.
Mais do que saber usar as letras do alfabeto, é preciso saber escrever bons parágrafos jurídicos com elas.
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